UM SEPULCRO HABITADO

UM SEPULCRO HABITADO

Luciana Pereira Azevedo [1]


[1] Mestranda no Programa de Literatura e Crítica Literária da PUC-SP
e editora de livros didáticos na FTD Educação.



Há muitas semanas driblavam os espaços enfastiados dos dias. Há muito não se podia correr nem tomar sol. Diziam que o vírus tinha potência de morte. Habitar aqueles cômodos era supostamente seguro. Das panelas, se desmanchava no ar o cheiro de feijão, que rapidamente se convertia na imagem do prato bordado de flores com arroz branquinho misturado ao caldo. O cabelo era feito de um coque alto e algumas mechas não se subordinavam ao penteado matutino e escorriam pelo pescoço. Ela mantinha sempre um pedaço de pano, cheio de borboletas pintadas, em um dos ombros. Era atalho para enxugar rapidamente as escumadeiras e as facas lustradas com esmero. Andava de lá pra cá o dia todo com seu vestido puído coberto por uma cortina quadriculada que chamava de avental. Embora o cabelo preso revelasse suas feições delicadas, havia algo de distante em seu olhar. Cantarolava para desanuviar até que o sol começasse a se esconder. Quando o céu tinha a cor de laranja, sua voz se calava e seus olhos se botavam tristes. Apressadamente, tinha de banhar o menino que havia ficado o dia todo rolando pelo chão de madeira carcomida do quarto.

O estrondo da porta batida antecipava os passos cambaleantes dele. Era o único que se atrevia a enfrentar a doença. Atravessava os cômodos e carregava consigo algo como o prenúncio de uma tempestade. O teto ficava repleto de nuvens cinzas e pairava um silêncio ensurdecedor. Quase nada era dito. Quase sempre era assim. Se lambuzava com o feijão enquanto as flores do prato, incomodadas com sua aparência, murchavam para não ter de encará-lo. Nada podia sair da rotina, mas o que fazer com aquelas ondas que se agitavam dentro da barriga do menino? Era tão assustador e dolorido. O desconsolado choro era embalado pelos braços aflitos dela. Era preciso que se aquietasse. Adormeceu.

Ao abrir os olhos, o menino sentiu que as ondas revoltas de suas entranhas não mais o incomodavam e se lembrou de que era preciso completar o trajeto do caminhão-pipa. Sentou-se perto de sua cama e pôs-se a brincar. Na escuridão da noite, iluminada pela luz fraca do corredor, o percurso se tornaria mais instigante.

Nada escapava aos sentidos aguçados do menino. Grito, riso, cheiro. Tudo despertava nele a vontade de entender o engenhoso funcionamento das coisas todas. Vozes entrecortadas em um diálogo abafado desviaram a atenção dedicada apenas ao desempenho do caminhão. Nesse tempo, com aproximadamente um metro de altura, já não precisava ficar na ponta dos pés para espiar o vão. O espaço inocupado, feito para transpassar chaves, era a escotilha que o transportava para a tempestade.

A mão espalmada era mais veloz que muitos de seus carrinhos. Cortava o ar como um relâmpago e atingia o rosto das feições delicadas. Ela tentava se desvencilhar, mas seu corpo franzino a traía. O coque se desfez como em um desmaio entre tantos solavancos. Os cabelos compridos voavam desassossegados e ruminavam o desejo de se desprender daquele couro. Não era de se entender ao certo o que acontecia, mas sabia que aqueles borrões escuros que mudavam de cor com o passar dos dias eram pintados pela impaciência dele. Eram exacerbados pelo desamor daqueles dias em que não podiam sequer se libertar das muralhas.

Eis que um silêncio sepulcral predominou junto ao seu olhar de desforra. O exterior era mesmo de morte? Ou a morte pairava mais perto do que imaginavam?


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