PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE OS DESDOBRAMENTOS DA PANDEMIA

ENTREVISTA COM VICTOR AURÉLIO


Psicólogo (UFRB)

Especialista em Saúde da Família com ênfase no Campo (UPE)

Mestre em Psicologia (UFG)                                                                                        

Doutorando em Psicologia (UFBA)

Professor universitário (UFRB)

 

Tema: “PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E REFLEXÕES SOBRE OS DESDOBRAMENTOS DA PANDEMIA”

 

1.    O que é Psicologia da Libertação e como ela contribui para o enfrentamento da Covid-19?

R: A Psicologia da Libertação é um projeto ético-político desenvolvido a partir da década de 1980, por Ignácio Martín-Baró, que propõe uma reorientação epistemológica e metodológica na Psicologia Social Latino-americana, de modo a fazer das particularidades da América Latina e dos problemas concretos das maiorias populares que nela habitam o ponto de partida para formulações teóricas e engajamento prático em Psicologia, nesse território.

Em busca de respostas para as angústias e sofrimentos do povo latino-americano, Martín-Baró considerou em suas reflexões algo que ficava à margem das interpretações individualizantes realizadas pela Psicologia hegemônica de sua época. Para o autor, as relações opressoras, em seus diversos níveis, são elementos que precisam ser considerados para que se realize uma análise efetiva sobre os níveis de saúde das populações latino-americanas, uma vez que, tais relações se encontram diretamente associadas às suas condições concretas e subjetivas de vida.

Desde as invasões colonizadoras do final do século XV e início do século XVI, os povos latino-americanos têm sido extremamente explorados e submetidos a aviltantes condições de vida para que as elites capitalistas garantam um acúmulo progressivo de riquezas. Essa relação histórica gera circuitos precarizados de vida onde percebe-se uma grande maioria de baixa renda sobrevivendo sob insegurança alimentar, insegurança habitacional, sem acesso real aos serviços e equipamentos de saúde, educação, saneamento básico; exposta a condições pauperizadas de trabalho e a processos que caracterizam o que hoje chamamos de racismo estrutural. Para a Psicologia da Libertação, promover saúde está diretamente associado a um contraponto a essa realidade adoecedora, assumindo o desafio de uma práxis que contribua para a sua superação e construção de uma sociabilidade alternativa.

Ao apontar para a necessidade de superação dos marcos adoecedores da sociedade capitalista, a Psicologia da Libertação põe sob crítica a postura de governantes que, em defesa do sistema econômico, estimulam a degradação social através de políticas de austeridade, incentivo à maior degradação ambiental, corte de direitos trabalhistas, militarização da vida e tentativa de atrofiamento da diversidade existencial. Considerando o cenário pandêmico no Brasil, a radicalização dos preceitos capitalistas significa um menor investimento na produção de respiradores, testes para Covid-19, equipamentos de proteção individual (EPI’s); a disponibilização de uma ineficiente retaguarda governamental frente a necessidade de isolamento social; o incentivo formal e institucionalizado do governo federal a aglomerações para que se garanta o livre fluxo de capitais etc. Isto é, se, por um lado, há uma crise sanitária disparada pela Covid-19, a sua continuidade e consequente aumento da mortalidade é nutrida por um modelo de desenvolvimento econômico que prioriza o lucro em detrimento da vida de milhares. Esses são determinantes sociais da saúde que a Psicologia da Libertação nos ajuda a compreender.

 

2.    Enquanto os países desenvolvidos gozam de seus privilégios, mesmo em momentos de crise, como o cenário atual da América Latina desafia a efetivação do desenvolvimento?

R: Historicamente, a América Latina sempre teve um papel importante para os países de capitalismo central – os chamados países “desenvolvidos”. Desde o sistema colonial clássico, é daqui que sai parte significativa das riquezas que garantem o luxo nas contemporâneas cortes metropolitanas. Se fizermos uma digressão histórica, observaremos que durante as diversas crises da economia capitalista a resposta desses países foi o aumento dos níveis de exploração sobre os países “subdesenvolvidos” para que suas perdas fossem minimizadas.

Na atual crise econômica e sanitária não será diferente. O esperado é que continuemos a ver cortes de direitos trabalhistas (reforma trabalhista) para facilitar maiores níveis de exploração; ampliação do tempo de trabalho (reforma da previdência); subfinanciamento do setor público (políticas de austeridade) para viabilizar privatizações e maior penetração dos capitais internacionais, etc. Isto é, o desenvolvimento de medidas capazes de resguardar a classe empresarial à revelia da precarização das condições de vida das maiorias populares. A nós, latino-americanos, resta o esforço pela construção de unidade, organização e luta popular contra as forças domésticas e internacionais que nos querem passivos enquanto nos exploram e desfrutam das riquezas por nós produzidas.

3.    Seria possível elencar as particularidades que impedem “a transformação” social brasileira? E quais a pandemia ressaltou?

R: Essa é uma pergunta para a qual dificilmente caberia uma só resposta. A complexidade social exige de nós análises mais pormenorizadas para a compreensão de sua dinâmica e fluxos. Contudo, é possível indicar aqui, à luz do trabalho de Ignácio Martín-Baró, um dos elementos que emperram os processos de transformação social.

De acordo com o autor, embora as condições concretas de vida dificultem processos de organização e luta popular por transformação social, determinadas condições subjetivas de um povo também podem constituir barreiras significativas para esse pleito. As formas de dominação das classes dominantes sobre as maiorias populares não estão restritas ao plano econômico. Para que sejam efetivas, aparelhos ideológicos são postos em movimento com o intuito de falsear a realidade e produzir sentidos imobilizadores e, até mesmo, sentidos sobre o mundo que ponham os próprios oprimidos contra projetos emancipatórios. Entre esses aparelhos, pode-se mencionar mídia burguesa de massa, que oferta a nível nacional uma interpretação tendenciosa dos fatos; e, os projetos políticos que visam restringir a crítica social nos processos de escolarização, reduzindo, assim, os riscos de insurgência popular.

Esses são exemplos de mecanismos que limitam a produção de sentidos e a formação de homens e mulheres capazes de lançar um olhar mais integral para a realidade que vivem, deixado tanto de reconhecer os abismos de desigualdade em que vivem, quanto de se empenharem na produção de fraturas nas correntes que os aprisionam.

A mentira institucionalizada – como a produção massiva de “fake news” observada nos últimos anos como estratégia para ascensão ao poder – é um dos exemplos de esforço por produção de sentidos coletivos que inviabilizem a construção de unidade e luta popular. A ideologização da realidade é um tema para o qual a Psicologia da Libertação se dedica, por compreender que desideologizar a vida cotidiana é uma forma de contribuir para a formação de condições subjetivas que facilitem luta por emancipação humana.

4.    Nessa perspectiva, quais as populações que mais sentem o desamparo do Estado? É possível continuar pensando democracia sem a superação das privações de liberdade?

R: Em uma democracia burguesa como a brasileira, a classe trabalhadora é, sem dúvida, a mais atingida pela pandemia. No entanto, é preciso que se diga: a classe trabalhadora é heterogênea e conta com estratos que claramente estão submetidos a condições de vida mais precarizadas que outros. Segundo dados do IBGE, referentes ao primeiro trimestre de 2020, a soma de desempregados e trabalhadores na informalidade é de aproximadamente 50 milhões de pessoas. Entre esses, cerca de 70% é de negros e negras, para quem o cenário pandêmico é vivenciado com maiores riscos de adoecimento e morte.

5.    Em sua vivência profissional, como você avalia a saúde pública no Brasil? Por que não lutar pelo SUS é nocivo à libertação?

R: O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das maiores conquistas do povo brasileiro. Pesquisadores do mundo inteiro vem ao Brasil para estudar suas políticas e dinâmicas operacionais. No entanto, existem alguns gargalos estruturais em sua eficiência que estão diretamente associados ao modelo político-econômico capitalista brasileiro. Um dos gargalos que considero centrais é o subfinanciamento do SUS.

O Brasil conta hoje com mais de 200 milhões de habitantes. Uma população diversa e que, por isso, demanda um diverso quadro de políticas que dê conta de suas particularidades nos diferentes níveis de complexidade. Como ofertar cobertura sanitária satisfatória sem recursos financeiros suficientes para tanto? A luta por um SUS capaz de objetivar toda a sua potência é também a luta por milhões de brasileiros e brasileiras que não têm condições de pagar por serviços privados de saúde. Em um país com tamanha desigualdade social, o que seria da população brasileira nessa pandemia se a assistência à sua saúde dependesse do setor privado? Certamente, milhares morreriam por não conseguirem pagar pelos serviços de cuidado em saúde. Nesse sentido, a existência do SUS é uma das garantias de sobrevivência das maiorias populares e, sem ele, qualquer processo de emancipação popular fica comprometido, pois, não há como se colocar de pé e lutar por libertação sem saúde.

6.    Quais obras indicaria aos interessados no tema?

R: Martín-Baró tem três grandes influências em sua obra: (1) a Teologia da Libertação, que sustenta uma crítica ao capitalismo enquanto sistema injusto, iníquo e, portanto, um pecado estrutural; (2) a tradição do pensamento marxista, cuja crítica ao capitalismo enquanto sistema político-econômico estruturado sobre a exploração e opressão das maiorias populares tem como desdobramento prático a luta por transformação social; e, (3) a obra do brasileiro Paulo Freire, em sua defesa aos processos educativos que desnudem a realidade, incentivem o pensamento crítico e nos ponha em condições subjetivas de, juntos, construirmos um mundo melhor. Considerando essas três influências e para o debate mais específico sobre a Psicologia da Libertação, indico os seguintes textos:

- Psicologia Social para a América Latina: o resgate da Psicologia da Libertação – Ferando Lacerda Jr. e Raquel Guzzo, 2011;


- Crítica e Libertação na Psicologia: estudos psicossociais – Fernando Lacerda Jr., 2017;


- Marxismo e Teologia da Libertação – Michel Lowy, 1991;


- Conscientização: teoria e prática da libertação – uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Livro escrito por Paulo Freire, em 1979;


- O Manifesto do Partido Comunista – Karl Marx e Friedrich Engels

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