ENTREVISTA COM
Psicólogo
(UFRB)
Especialista
em Saúde da Família com ênfase no Campo (UPE)
Mestre
em Psicologia (UFG)
Doutorando
em Psicologia (UFBA)
Professor universitário (UFRB)
Tema: “PSICOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E REFLEXÕES SOBRE OS DESDOBRAMENTOS DA PANDEMIA”
1. O que é Psicologia da Libertação e como ela contribui para o enfrentamento da Covid-19?
R:
A Psicologia da Libertação é um projeto ético-político desenvolvido a partir da
década de 1980, por Ignácio Martín-Baró, que propõe uma reorientação
epistemológica e metodológica na Psicologia Social Latino-americana, de modo a
fazer das particularidades da América Latina e dos problemas concretos das
maiorias populares que nela habitam o ponto de partida para formulações
teóricas e engajamento prático em Psicologia, nesse território.
Em
busca de respostas para as angústias e sofrimentos do povo latino-americano,
Martín-Baró considerou em suas reflexões algo que ficava à margem das
interpretações individualizantes realizadas pela Psicologia hegemônica de sua
época. Para o autor, as relações opressoras, em seus diversos níveis, são
elementos que precisam ser considerados para que se realize uma análise efetiva
sobre os níveis de saúde das populações latino-americanas, uma vez que, tais relações
se encontram diretamente associadas às suas condições concretas e subjetivas de
vida.
Desde
as invasões colonizadoras do final do século XV e início do século XVI, os
povos latino-americanos têm sido extremamente explorados e submetidos a
aviltantes condições de vida para que as elites capitalistas garantam um
acúmulo progressivo de riquezas. Essa relação histórica gera circuitos
precarizados de vida onde percebe-se uma grande maioria de baixa renda
sobrevivendo sob insegurança alimentar, insegurança habitacional, sem acesso
real aos serviços e equipamentos de saúde, educação, saneamento básico; exposta
a condições pauperizadas de trabalho e a processos que caracterizam o que hoje
chamamos de racismo estrutural. Para a Psicologia da Libertação, promover saúde
está diretamente associado a um contraponto a essa realidade adoecedora,
assumindo o desafio de uma práxis que contribua para a sua superação e
construção de uma sociabilidade alternativa.
Ao
apontar para a necessidade de superação dos marcos adoecedores da sociedade
capitalista, a Psicologia da Libertação põe sob crítica a postura de
governantes que, em defesa do sistema econômico, estimulam a degradação social
através de políticas de austeridade, incentivo à maior degradação ambiental,
corte de direitos trabalhistas, militarização da vida e tentativa de
atrofiamento da diversidade existencial. Considerando o cenário pandêmico no
Brasil, a radicalização dos preceitos capitalistas significa um menor
investimento na produção de respiradores, testes para Covid-19, equipamentos de
proteção individual (EPI’s); a disponibilização de uma ineficiente retaguarda
governamental frente a necessidade de isolamento social; o incentivo formal e
institucionalizado do governo federal a aglomerações para que se garanta o
livre fluxo de capitais etc. Isto é, se, por um lado, há uma crise sanitária
disparada pela Covid-19, a sua continuidade e consequente aumento da
mortalidade é nutrida por um modelo de desenvolvimento econômico que prioriza o
lucro em detrimento da vida de milhares. Esses são determinantes sociais da
saúde que a Psicologia da Libertação nos ajuda a compreender.
2.
Enquanto
os países desenvolvidos gozam de seus privilégios, mesmo em momentos de crise,
como o cenário atual da América Latina desafia a efetivação do desenvolvimento?
R: Historicamente, a América Latina sempre teve
um papel importante para os países de capitalismo central – os chamados países
“desenvolvidos”. Desde o sistema colonial clássico, é daqui que sai parte
significativa das riquezas que garantem o luxo nas contemporâneas cortes
metropolitanas. Se fizermos uma digressão histórica, observaremos que durante
as diversas crises da economia capitalista a resposta desses países foi o
aumento dos níveis de exploração sobre os países “subdesenvolvidos” para que
suas perdas fossem minimizadas.
Na atual crise econômica e sanitária não será
diferente. O esperado é que continuemos a ver cortes de direitos trabalhistas
(reforma trabalhista) para facilitar maiores níveis de exploração; ampliação do
tempo de trabalho (reforma da previdência); subfinanciamento do setor público
(políticas de austeridade) para viabilizar privatizações e maior penetração dos
capitais internacionais, etc. Isto é, o desenvolvimento de medidas capazes de
resguardar a classe empresarial à revelia da precarização das condições de vida
das maiorias populares. A nós, latino-americanos, resta o esforço pela
construção de unidade, organização e luta popular contra as forças domésticas e
internacionais que nos querem passivos enquanto nos exploram e desfrutam das
riquezas por nós produzidas.
3.
Seria
possível elencar as particularidades que impedem “a transformação” social
brasileira? E quais a pandemia ressaltou?
R:
Essa é uma pergunta para a qual dificilmente caberia uma só resposta. A
complexidade social exige de nós análises mais pormenorizadas para a
compreensão de sua dinâmica e fluxos. Contudo, é possível indicar aqui, à luz
do trabalho de Ignácio Martín-Baró, um dos elementos que emperram os processos
de transformação social.
De
acordo com o autor, embora as condições concretas de vida dificultem processos
de organização e luta popular por transformação social, determinadas condições
subjetivas de um povo também podem constituir barreiras significativas para
esse pleito. As formas de dominação das classes dominantes sobre as maiorias
populares não estão restritas ao plano econômico. Para que sejam efetivas,
aparelhos ideológicos são postos em movimento com o intuito de falsear a
realidade e produzir sentidos imobilizadores e, até mesmo, sentidos sobre o
mundo que ponham os próprios oprimidos contra projetos emancipatórios. Entre
esses aparelhos, pode-se mencionar mídia burguesa de massa, que oferta a nível
nacional uma interpretação tendenciosa dos fatos; e, os projetos políticos que
visam restringir a crítica social nos processos de escolarização, reduzindo,
assim, os riscos de insurgência popular.
Esses
são exemplos de mecanismos que limitam a produção de sentidos e a formação de
homens e mulheres capazes de lançar um olhar mais integral para a realidade que
vivem, deixado tanto de reconhecer os abismos de desigualdade em que vivem,
quanto de se empenharem na produção de fraturas nas correntes que os
aprisionam.
A
mentira institucionalizada – como a produção massiva de “fake news” observada
nos últimos anos como estratégia para ascensão ao poder – é um dos exemplos de
esforço por produção de sentidos coletivos que inviabilizem a construção de
unidade e luta popular. A ideologização da realidade é um tema para o qual a
Psicologia da Libertação se dedica, por compreender que desideologizar a vida
cotidiana é uma forma de contribuir para a formação de condições subjetivas que
facilitem luta por emancipação humana.
4.
Nessa
perspectiva, quais as populações que mais sentem o desamparo do Estado? É
possível continuar pensando democracia sem a superação das privações de
liberdade?
R:
Em uma democracia burguesa como a brasileira, a classe trabalhadora é, sem
dúvida, a mais atingida pela pandemia. No entanto, é preciso que se diga: a
classe trabalhadora é heterogênea e conta com estratos que claramente estão
submetidos a condições de vida mais precarizadas que outros. Segundo dados do
IBGE, referentes ao primeiro trimestre de 2020, a soma de desempregados e
trabalhadores na informalidade é de aproximadamente 50 milhões de pessoas.
Entre esses, cerca de 70% é de negros e negras, para quem o cenário pandêmico é
vivenciado com maiores riscos de adoecimento e morte.
5.
Em
sua vivência profissional, como você avalia a saúde pública no Brasil? Por que
não lutar pelo SUS é nocivo à libertação?
R:
O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das maiores conquistas do povo brasileiro.
Pesquisadores do mundo inteiro vem ao Brasil para estudar suas políticas e
dinâmicas operacionais. No entanto, existem alguns gargalos estruturais em sua
eficiência que estão diretamente associados ao modelo político-econômico
capitalista brasileiro. Um dos gargalos que considero centrais é o
subfinanciamento do SUS.
O
Brasil conta hoje com mais de 200 milhões de habitantes. Uma população diversa
e que, por isso, demanda um diverso quadro de políticas que dê conta de suas
particularidades nos diferentes níveis de complexidade. Como ofertar cobertura
sanitária satisfatória sem recursos financeiros suficientes para tanto? A luta
por um SUS capaz de objetivar toda a sua potência é também a luta por milhões
de brasileiros e brasileiras que não têm condições de pagar por serviços
privados de saúde. Em um país com tamanha desigualdade social, o que seria da
população brasileira nessa pandemia se a assistência à sua saúde dependesse do
setor privado? Certamente, milhares morreriam por não conseguirem pagar pelos
serviços de cuidado em saúde. Nesse sentido, a existência do SUS é uma das
garantias de sobrevivência das maiorias populares e, sem ele, qualquer processo
de emancipação popular fica comprometido, pois, não há como se colocar de pé e
lutar por libertação sem saúde.
6.
Quais
obras indicaria aos interessados no tema?
R:
Martín-Baró tem três grandes influências em sua obra: (1) a Teologia da Libertação,
que sustenta uma crítica ao capitalismo enquanto sistema injusto, iníquo e,
portanto, um pecado estrutural; (2) a tradição do pensamento marxista, cuja
crítica ao capitalismo enquanto sistema político-econômico estruturado sobre a
exploração e opressão das maiorias populares tem como desdobramento prático a
luta por transformação social; e, (3) a obra do brasileiro Paulo Freire, em sua
defesa aos processos educativos que desnudem a realidade, incentivem o
pensamento crítico e nos ponha em condições subjetivas de, juntos, construirmos
um mundo melhor. Considerando essas três influências e para o debate mais
específico sobre a Psicologia da Libertação, indico os seguintes textos:
-
Psicologia Social para a América Latina: o resgate da Psicologia da Libertação
– Ferando Lacerda Jr. e Raquel Guzzo, 2011;
-
Crítica e Libertação na Psicologia: estudos psicossociais – Fernando Lacerda
Jr., 2017;
-
Marxismo e Teologia da Libertação – Michel Lowy, 1991;
-
Conscientização: teoria e prática da libertação – uma introdução ao pensamento
de Paulo Freire. Livro escrito por Paulo Freire, em 1979;
- O Manifesto do Partido Comunista – Karl Marx e Friedrich Engels
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