BARBARIDADE
Ana Valéria Fink [1]
[1] Ana Valéria Fink, formada em Odontologia,
também cursou Letras na Uneb (Campus XXI).
Poeta, cronista, contista. Autora de REGANDO OS JARDINS DO SENHOR E
OUTRAS CRÔNICAS (Ibicaraí: Via Litterarum, 2015); A HISTÓRIA DE UMA BOCA
(Recife: CEPE, 2015, infantil) e MOSAICO (Curitiba: Selo Coletivo Marianas,
2018, poemas)
Bah! Eu bem poderia iniciar esta crônica com outra
interjeição, mais próxima de minha “bolha”, como Ôxi, já que estou morando na
Bahia, ou Putz, tão popular no Paraná, mas só cabe Bah!, mesmo. Porque é uma
barbaridade o que a humanidade vem passando. Consequências... da barbárie
humana.
Eu, que já sou, por natureza, afetuosa, depois que me
“abaianei”, desaprendi totalmente a economizar demonstrações de carinho. Um
“xêro”, aqui, que sempre fluía desenfreado, agora tem de ser, a pulso,
reprimido. E isso tem causado muita tristeza nestes dias. A impossibilidade de
externar os afetos fisicamente sinto como uma couraça que me afasta de meus
iguais, me abster de tocar os por quem tenho carinho me melindra.
Enquanto ainda não estava praticando idealmente o
confinamento, me deparei, na rua, com seu Geraldo, um idoso de meu agrado.
Nossos encontros, que foram sempre celebrados com abraços calorosos, resumiu-se
a um acenar de cabeças, e um olhar, dele, que poderia definir como amedrontado;
o meu, se ele o notou, viu-o marejado. Na semana passada, quando ainda
concordei com a vinda de minha diarista, mas, à sua chegada, lhe disse que era
mais prudente que não nos abraçássemos como de costume, senti um desconforto
tão grande, como se fosse eu a estar praticando ato de rejeição deliberado.
Hoje, sendo ainda necessário dispensá-la (com a remuneração mantida,
obviamente, que isto é um dever), foi a muito custo que a convenci a não vir.
Disse-me que a entristecia por demais não podermos estar perto neste momento.
E, ainda hoje, na minha última saidela de casa pra ultimar as providências que
me permitam a quarentena, ao encontrar com meu grande amigo Tião (que não é
baiano, mas mineiro, portanto igualmente “abraçador”), tivemos de nos conter e
contentar com trocas de sorrisos, sem graça, doídos, lamentosos...
Estamos num momento de inversão inacreditável, onde cuidar é
ficar longe, proteger é se afastar, amparar é distanciar, acolher é
desaproximar. Só posso torcer, com todas as fatigadas forças, para que, quando
tudo (oxalá!) serene, sejamos capazes de, além de saciar a falta dos abraços e
apertos de mão, apreender o que a pandemia nos impõe: que não somos cada um só
um, que cada ato, de cada um, respinga em todos, em cada criatura, e que cada
um sozinho não vale é nadica de nada... Que, a partir da peste, o isolamento
seja outro: que blindemos o planeta da funesta ganância humana.
(Em 19/03/20, início da pandemia.)
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