POUCO MUITO

POUCO MUITO 

Ana Valéria Fink [1]


[1] Ana Valéria Fink, formada em Odontologia, também cursou Letras na Uneb (Campus XXI).  Poeta, cronista, contista. Autora de REGANDO OS JARDINS DO SENHOR E OUTRAS CRÔNICAS  (Ibicaraí: Via Litterarum, 2015); A HISTÓRIA DE UMA BOCA (Recife: CEPE, 2015, infantil) e  MOSAICO (Curitiba: Selo Coletivo Marianas, 2018, poemas)

 


Há mais de mês em casa por conta da pandemia, como muitos, quase todos, com os planos de curto prazo adiados, sem previsão de nova data. E muita insegurança de projetar mais adiante. Como se o futuro inexistisse...

A mudança de endereço, protelada. A casa está atopetada, todas as minhas coisas encaixotadas, cenário desolador. O que me exige memória: cadê o processador de alimentos? Em que lugar meti o creme hidratante? Onde foi mesmo que guardei aqueles apontamentos do novo poema? Difícil mesmo é encontrar esperança...

Nessa solidão, o que antes aparentava ser detalhe, no cotidiano vira uma grande falta. O jardim, sem a sabedoria e as ferramentas adequadas de seu Zé pra cuidar dele, sucumbiu às minhas toscas tentativas de poda. A casa, sem o auxílio caprichoso de Lia, exibe algumas teias de aranha, que meus braços já não têm força pra alcançar. A sala, por vezes tão alegrada pela visita dos amigos, se converte em espaço inútil. A cozinha, faz tempo, frequentada por breves instantes, já que minha alimentação tem se limitado a pratos de facílima execução, omeletes, sanduíches, salada de frutas, que não dá mesmo vontade de cozinhar só pra mim. Na verdade, nada que faça só pra mim tem graça, faz tempo.

A mim, a pandemia tem trazido a possibilidade de redimensionamento de importâncias, prioridades e necessidades. Me tornei um ponto de interrogação. E com esse espírito passei, pela primeira vez na vida, e, espero com veemência, última, também meu aniversário isolada. Então esse, que já é um dia originalmente repleto de nostalgia, se tornou tristíssimo, apesar da familiada toda se preocupando, me acessando, me aconchegando, ainda que sem abraços. Devido à insistência de meus queridos, intentei focar no meu bem-estar, afinal, era o “meu” dia! Botei pra tocar músicas de meu agrado, cuidando para que fossem de bom astral, abri uma cervejinha e decidi fazer um almoço. Entrementes, uma autoanálise mais esmiuçada.  Nesse dia, me senti merecedora de preparar feijão pra mim. Achei bonito o presente.

 


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